Textos

O Garoto
Quarenta e um anos se passaram desde aquele cinco de novembro. Mas se invoco a lembrança, vem-me à mente detalhes daquele tempo. Não são lembranças com mágoa, rancor, incômodas, mas são lembranças que poderiam não existir. O garoto, também com 16 anos, estudando o mesmo ano do então colegial, porém ao invés de um colégio da periferia da Zona Leste, frequentava outro na região da Oscar Freire, onde morava com sua família. Ao invés de ser a filha mais nova de uma família paupérrima, o pai era diretor de uma empresa, coligada a um grande banco nacional. Até aí, tudo bem! Meninos e meninas se entendem. Mas não com aquele. Ele era cruel. Era velhaco. Era mau! E eu percebi. No primeiro dia. No primeiro olhar. Tenho isso comigo até hoje. Percebo. Percebo, mas convivo. E convivi com ele quase três anos!

Logo nas primeiras horas disparou para mim: Você estuda? - Sim, estudo. Está em que ano? No segundo colegial. Ah, eu também! Mas você não vai fazer faculdade, não é? Falo isso porque você não tem cara de quem pode pagar uma faculdade. Meu pai vai pagar a minha. Aliás já estou fazendo cursinho. Vou fazer Direito! Vou ser advogado! Naquele momento, senti-me tão pequena, tão sem futuro, abaixei a cabeça e comecei a trabalhar. Então ele entendeu, naquele momento que tinha poder sobre mim – tinha o poder do dinheiro do pai que o levaria a uma faculdade. E eu? O que tinha? Nada! Nada além da vontade férrea de mudar.

Mudei!

Levou um bom tempo. Primeiro, ao repetir aquele mesmo ano no colégio, fui para uma escola particular, paga com meu salário. E só dava para isso. Não tinha roupas bonitas, sapatos, bolsas, lavava os cabelos com sabão de coco, e andava com tênis rasgado. Nos quase
três anos seguintes a minha vida naquele escritório começava ao acordar – pois sabia que durante todo o dia enfrentaria suas ofensas, suas críticas, seus deboches. Formou um grupo coeso com os outros três garotos do setor, e o chefe, que por mais que percebesse a bestialidade dele, ficava a seu lado, afinal era filho do Diretor! E todos os dias, quando eu entrava na sala, ele me perguntava: E aí, deu muito ontem? E assim seguia o meu dia, entre perguntas capciosas e ofensas - em dado momento eu era feia, em outro era burra. Ele falava, e os outros riam.

Anos depois, encontrei um deles, em uma situação bem mais favorável para mim, em um hall de elevador, e ele me reconheceu. Não lembro o nome. Não o reconheci. Mas ele me reconheceu e falou comigo, e em seus olhos havia um quê de admiração. Afinal, não era mais a menina de dezesseis, dezessete anos, insegura, imatura que carregava o mundo nas costas.

Teve um período que foram trabalhar lá duas garotas, pouco mais velhas que eu, bem vestidas. Uma delas tinha sido segunda princesa de Franco da Rocha! Ela fazia questão de contar. Eram bonitas. Gostava delas. Elas muitas vezes me deixavam no vácuo, sem resposta. Mas já estava acostumada. Um dia o chefe veio e me disse para não as deixar fazer
aquilo. Ele entendia. Mas não fazia nada. E elas se tornaram um novo ponto de humilhações. O garoto separava o trabalho todos os dias. O melhor era para elas, e para mim sempre o pior. Preferencialmente o que tivesse que ir para o arquivo morto. Eu não me importava. Era
um canto onde eu me escondia. Ficava livre dos insultos. Mas, tinha que respirar fundo e voltar ao trabalho.

Um dia, o Diretor veio e me ofereceu outra vaga, para trabalhar com ele. Trabalho limpo, mais importante, com melhor salário. Começaria na segunda. No final de semana me preparei, feliz. Pus saia e blusa, sapatos e fui para a empresa. Qual não foi minha surpresa ao
chegar e ver meu chefe na cadeira destinada a mim. Era tão tímida, tão insegura que não tive coragem de ir lá perguntar. Fui para a antiga sala e me sentei para trabalhar. Tempos depois o garoto me contou que o meu chefe pediu para o Diretor a vaga, alegando que eu não tinha
perfil para tal. Teria feito tanta diferença na minha vida profissional nos anos seguintes, mas o meu medo das chacotas era tanto que não questionei. Ouvi tanto ao longo da vida que não tinha perfil! Criei meu próprio perfil!

Um ano depois, ao voltar de férias, sem pensar duas vezes, entrei naquela sala pela última vez e pedi demissão. Saí de lá sem olhar para trás.
Fátima Batista
Enviado por Fátima Batista em 09/02/2021
Alterado em 09/02/2021
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